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A sociedade dos vivos e dos mortos em Ana Paula Maia

por Isa de Oliveira
A morte tarot em xilogravura por Pedro Indio. Retirado de https://br.pinterest.com/pin/611293349391182660/

Poucas vezes li um livro inteiro em um dia, ainda mais em se tratando de romance e ficção. Dias antes do início das minhas férias esbarrei-me com Enterre seus mortos, da Ana Paula Maia na biblioteca pública estadual de Minas Gerais. Atiçada mais pela curiosidade das indicações de alguns booktubers, cujo título facilmente memorizei e prestes a gozar alguns dias de férias, resolvi incluir essa leitura durante o meu descanso na viagem. Antes de viajar iniciei o primeiro capítulo. De imediato, me senti obrigada a interromper a leitura ao final do primeiro capítulo porque sabia que aquele livro tinha algo especial na narrativa. Guardei-o para ler durante a viagem.

Ao retomá-lo, resolvi reler o primeiro capítulo. O embalo da leitura foi único, simplesmente não conseguia parar de ler, dei pausas somente para duas ocasiões: fazer as necessidades fisiológicas e almoçar, ademais foram vinte e quatro horas de leitura imersa nessa obra.

Ora, qual o segredo de uma obra capaz de prender um leitor por vinte e quatro horas ininterruptas de leitura? A resposta está na própria narrativa. Escrita de forma clara e concisa, e não se detém demasiadamente em descrições, característica típica de autores contemporâneos. A obra preocupa-se com os fatos que envolvem os personagens, amarrando-os numa sequência de causas e efeitos que não são tão presumíveis como acreditamos. O próprio desenrolar da leitura irá desencadear revelações de partes dos acontecimentos.

Este livro é um grande conto em que a premissa temática é a morte. De todas as perspectivas possíveis, ela está presente no cotidiano do ser humano. Até mesmo quando pisamos numa formiga que passa rente aos nossos pés, estamos de fato cruzando com a morte. Edgar Wilson é um funcionário que trabalha recolhendo animais mortos nas estradas, uma profissão atípica e inexistente em nosso país, um indicativo curioso dessa narrativa. Nas rodovias brasileiras encontramos carcaças de muitos animais atropelados e sequer retirados das vias Eles ficam à mercê da limpeza alimentar dos urubus-de-cabeça-preta, da família dos corvos e abutres, uma ave carnívora e agressiva que se alimenta de restos de carnes em putrefação e até lixos, um animal urbano acostumado à presença humana. Onde tem seres humanos, tem urubus. Parece metáfora, mas não é, isso consta nos estudos de ornitologia que já li. Para mim, a presença dos urubus é uma tradução simbólica da presença da morte nas proximidades.

A narrativa de Ana Paula Maia é bem ao estilo dos contos de Edgar Allan Poe: o horror que não chega a assustar, mas retrata os desvios que a morte provoca dentro de situações normais da vida rotineira de um removedor de animais mortos de estrada. A imagem mais marcante na obra é o olhar do personagem principal para o céu. Ele vê o grupo de urubus sobrevoando uma área próxima da estrada. Ali está sinalizada a presença da morte e a sua materialidade, um corpo em decomposição sendo devorado pelas aves carnívoras. Uma cena tão comum às rodovias brasileiras.

O destino dos animais mortos é tão semelhante ao do ser humano quando o assunto é a morte, aqueles que com um pouco de sorte tem um enterro digno e há aqueles que sequer serão reconhecidos tanto pela sua existência ou não. Outro personagem na história é o ex-padre Tomás, que trabalha igualmente como Edgar removendo animais mortos. O ápice da narrativa é quando Edgar não encontra um animal morto na estrada, mas o corpo de uma mulher assassinada e pede ajuda ao Tomás. Dão início às divagações de onde começa o exercício profissional, suas regras e limitações no tratamento dos corpos mortos de animais e onde termina o dever humano diante de um indigente. É neste embate que Edgar Wilson se torna o protagonista de uma consciência social, que deveria ser a consciência de uma sociedade dos vivos.

Em certa passagem, Edgar e Tomás estão na sina para levar o corpo achado ao órgão responsável por tal serviço e no meio do percurso encontram uma cidade deserta, da qual me pareceu bem típica de filmes de Hollywood – inclusive as cenas dos necrotérios ou os conhecidos necrotérios, chamados Institutos Médicos Legais (IML).

A dupla se depara com o desafio de cadastrar um corpo humano, desconhecido, que será mais um número aos inúmeros corpos não identificados ou não reclamados que se tornam códigos alfa-numéricos, sem família, sem origem, sem destino. Após a jornada do caminho do corpo desconhecido da mulher, eles iniciam a saga de devolver um outro corpo do qual procuravam para uma conhecida e que reconheceram a sua identidade em um dos necrotérios, com isso revivem o mesmo drama de enfrentar o trajeto com mais um corpo na carroceria.

A ironia está no fato de eles não conseguirem provar a identidade daquele ser, a sua existência, uma vez que a morte decreta que aquele ser passou a não existir mais, iguala a sua condição de um ente de outro universo, a sociedade dos mortos. Mesmo tão acostumados a transportarem corpos de animais mortos, sentem a responsabilidade de transitarem com um ente que não integra mais a mesma condição deles, como se fossem contrabandistas de corpos. Durante a troca de corpos com o IML, descobrem que, por trás da morte, o ser humano é capaz das piores atrocidades. Não sabendo o limite entre o que permanece e o que se vai, há na narrativa a clara evidência de que tráfico de corpos e de identidades é algo comum. Os vivos se apropriam dos dados e identidade de quem um dia teve sua existência documentada e sua morte silenciada: um ser que nunca morre documentalmente. Esta passagem me fez relembrar o romance de Flávio Gomes, Dois Cigarros (Editora Gulliver, 2018), em que identidades de indigentes são usadas como parte de um esquema de falsificação de documentos para fugitivos. A capacidade humana de violação transcendente à própria morte.

Sem muita descrição, as passagens em que os personagens estão em contato com corpos sem vida, não irão fazer você perder seu sono. A escrita de Ana Paula Maia é enxuta, com ênfase a uma sequência de ações que provocam no leitor uma tensão carregada de suspense, a história seria macabra se a autora aprofundasse mais nesses aspectos descritivos, detalhista da matéria que envolve a morte, o corpo.

Enterre seus mortos foi lançado pela Companhia das Letras no ano que a autora venceu o Prêmio São Paulo de Literatura, em 2018, com a obra lançada pela editora Record Assim na Terra como embaixo da Terra (2017). Neste cenário, seu nome se destacou como uma das autoras contemporâneas com um conjunto de obra profícuo ao retratar aspectos cotidianos muito despercebidos. Ela capta naquilo que vemos como rotina e costumeiro algo muito maior e fala de nossa essência. Retira do universo filosófico e místico questões como a morte, o sentido da vida, o caráter humano, o trabalho e a condição do homem enquanto autor de suas ações perante ao outro, sua relação com a fé, o estranhamento com situações inimagináveis tais como o enfrentamento da morte, a morte do outro e de si.  

É dessa forma que acredito que a literatura é capaz de nos levar às grandes reflexões sobre temas tão humanos e sensitivos como a morte e seus vários sentidos e o quanto ela está presente no nosso dia a dia, não apenas quando perdemos algum ente querido ou conhecido. Lidamos com a morte de diferentes formas, mas a ignoramos constantemente porque lutamos contra a sua sobrevida, senão viveríamos um eterno apocalipse.

Livro: Enterre seus mortos
Autora: Ana Paula Maia
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 136
Preço: 34,90 Livro / 23,90 Ebook


Fevereiro do ano que quebrei meu pé em pequenas partes…

Isa de Oliveira é doutoranda e mestre em Estudos de Linguagens, revisora, resenhista e crítica, produtora de conteúdo do bookstagram @corujadasletras, poeta e escritora, autora de Intermitências (Crivo Editorial, 2019).

Comment (4)

  • Muito bem escrito o texto. Deu uma vontade enorme de ler ao livro. Como sempre arrasando né Isa? Parabéns

  • Adquiri este livro por indicação da Isa de Oliveira. Estou ansioso pra começar. A Literatura nos possibilita esta interlocucao, este extravasar. Apropriamos da produção do escritor, e fazemos nova construção. A Morte, precisa ser falada, tocada. A sociedade ocidental não estimula o debate, a reflexão sobre este tema q é nossa única certeza. Parabéns a autora e a Isa.

  • Resenha incrível, que desperta até em quem não é fã assídua do gênero, a vontade de ler tal obra.

  • Li a resenha e me deu vontade de ler o livro. Somente pessoas sensíveis como a Isa conseguem esse poder de síntese preservando a integridade da narrativa. O livro já está na minha lista de leitura.

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